top of page
Buscar

Silêncio, Mobília e Trânsito

  • Foto do escritor: Luiza Freitas
    Luiza Freitas
  • 28 de mar. de 2023
  • 5 min de leitura

(...)

e a gente prestar atenção e fizer silêncio

pode ser que ouça

alguma mensagem

perdida no ar


(Marília Garcia)



Este é aqui é o primeiro texto do Tarefa Afetar que fala diretamente sobre escuta. Só que, na verdade, ele fala sobre silêncio. Escrevi lá por 2019, quando estava fazendo uma pós em musicoterapia e me encantando pelos efeitos sutis do som e do silêncio em nossas vidas. Conhecia, aos poucos, algumas figuras da história (ocidental e hegemônica, cabe dizer) da música, que me fizeram passear um pouco pelo trânsito do silêncio no som. Dos procedimentos de escuta sobre os quais ando esticando o pescoço para testemunhar, o primeiro deles é atentar-se&afetar-se. Isso tem muito a ver com esse texto de 2019 e é ele quem inaugura o projeto, com invasões de uma versão minha de 2023 rasurando e palpitando o texto.


Enfim, vou começar com uma imagem.



ree


O homem representado na pintura, por Santiago Rusiñol em 1891, é Erik Satie. Um boêmio que, dizem, introduziu a ideia de música ambiente.

Ele queria criar músicas que se misturassem com os sons ao redor, músicas para serem “ouvidas” e não “escutadas”. No entanto, acostumadas com as composições deste período, as pessoas paravam para escutá-las. Erik, não atingindo seu objetivo, dava gritos enfurecidos, dizendo para continuarem fazendo o que estavam fazendo…


Imagina isso: O silêncio das pessoas era o que atrapalhava a composição de ser realmente escutada.


A ideia de uma música ambiente, que Satie chamava "furniture music", podia parecer meio absurdo no fim do século XIX, mas em meados para o fim do século XX foi ficando cada vez mais comum. Hoje em dia, em qualquer elevador, shopping, restaurante, sala de espera, videogame, tem um sonzinho de fundo, estrategicamente colocado e que mal percebemos.


A minha primeira experiência significativa com música ambiente foi dormir ao som de Brian Eno após noites de insônia. Outro artista que tinha suas músicas ambientes ouvidas e escutadas, já nos anos 70. Inclusive, foi Brian Eno quem cunhou o termo "música ambiente".


O que será que aconteceu do fim do século XIX à meados do século XX para que a música ambiente fosse de um absurdo sem sentido para um plano de fundo acolhedor intensivamente utilizado?


De modo que, agora, no século XXI, passamos horas com a nossa "música ambiente" criada por nós mesmos. As nossas playlists nos acompanham quase que de dentro, por meio dos fones de ouvido. Aceleramos nossa surdez a fim de ouvir nossa trilha sonora de existência nem sempre realmente “escutando”.

Quando escrevi esse texto, lá em 2019, fiquei imaginando o que um cara como Erik Satie acharia disso. E pensei que, talvez, ele gritasse enfurecido para que as pessoas escutassem os sons ao redor delas.

Conheci Erik Satie após entrar em contato com o seu nome em um livro de poesia do Oswald de Andrade. O prefácio me ofereceu a imagem de quem satirizava (satie-erik) as expectativas e regras mais estabelecidas no universo musical, lá no final no século XIX, quando isso ainda nem era maneiro. Fui me aventurar nos wikipedias, e a noção de furniture music acendeu um encantamento. Essa ideia de uma música mobília, que se mistura ao ambiente. A precursora da tal música ambiente, que me levou à Brian Eno e alguns mais. Era radical, para mim, a ideia de misturar os sons musicais ao ambiente, e também adicionar sons cotidianos à música, naquela época. Além disso, é interessante testemunhar como isso reverbera na música atualmente. Ao menos foi permitindo, para mim, que pouco sei de teoria musical, uma escuta mais próxima, disponível e atenta.

Vindo aqui de 2023, revisitando meu texto de 2019, é bacana lembrar que naquele momento, estava lendo um pouco sobre arte conceitual, e que, tempos depois desse encantamento com a música ambiente, estava me aproximando da crítica da arte e das suas formas de legitimação, operando para além dos objetos e formas, mas dos conceitos e ideias. Assim como a música ambiente de Satie me chamava a atenção, o aspecto transitório, interativo e contextual das mais variadas expressões artísticas começavam a me encantar.


Voltando ao livro “Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade”, na página marcada como primeiro encontro com o nome Erik Satie, coincidentemente encontrei outro nome, que me passou batido naquele tempo. John Cage.


No Woodstock de 1951, John Cage subiu ao palco, sentou na frente de seu piano, e enquanto todos esperavam sua apresentação musical, ficou em silêncio, por 4 minutos e 33 segundos. A composição 4’33”, ele diria, demorou anos para ser composta. Fica para mim, como ela oferece um outro contato com o som, assim como havia sido com Erik Satie e Brian Eno. Agora, a sensação era de um contato cru com o ambiente, os sons que ele oferece, imprevisíveis, distantes ou pertinho. E o contato com o meu ambiente interno, comigo, e os meus sons.


A parte mais encantadora da descoberta foi encontrar diversas versões da 4’33”. Versão death metal, de orquestra, de um homem e 15 instrumentos. Todas criativas e singulares à sua maneira, na relação entre a expectativa de som e o silêncio. Simultaneamente à expectativa de silêncio e o sons do ambiente.

A questão do silêncio foi cara à John Cage e o é para a música. No entrelace inegável entre arte e vida, o silêncio também se faz essencial em nossa existência. Afinal, quais são os sons que rodeiam o nosso silêncio? “A experiência do som, que eu prefiro a todas as outras, é a experiência do silêncio. E o silêncio, em quase todos os lugares do mundo, atualmente, é o [som do] trânsito. Se você escuta Beethoven, ou Mozart, pode percebe que eles sempre são os mesmos, mas se você escutar o trânsito, você percebe que é sempre diferente” (John Cage, 2007)

[Disponível aqui: youtube.com/watch?v=pcHnL7aS64Y&t=4s]


Curioso me ler aqui do futuro, encantada por esses três homens brancos do hemisfério norte. São três figuras importantes, inspiradoras, que fazem pensar muito acerca das paisagens sonoras e o que se pode produzir da atenção e disponibilidade que criamos diante delas. No entanto, fiquei pensando o que outras pessoas dizem sobre isso daqui da américa latina. Pensei em atividades cotidianas, como andar de metrô ou caminhar na rua, e no ato singelo de atentar-se: escutar conversas, o som das ruas, dos comerciantes ambulantes, dos alto-falantes, dos nossos pés ritmados na calçada, (...). Fica para outra conversa, mas bem antes de Satie, trabalhadoras e trabalhadores estavam tão atentos aos sons de suas atividades de trabalho, como carregar pianos ou debulhar o milho, que iam inventando canções no processo como forma de resistência, entretenimento e potencialização do trabalho coletivo.


Acredito que meu encantamento pela música ambiente e o silêncio tem a ver com a possibilidade de se atentar ao que normalmente nos passa batido e perceber que de algo muito simples e ordinário, coisas incríveis se criam. A arte não sai ilesa do cotidiano. Por mecanismos vários é a ele agregada e o agrega. Hoje, as músicas ambiente de fato parecem ter se transformado em mobília, um adereço à composição do ambiente. Assim como as paisagens sonoras que nos rodeiam, como o transito, podem produzir em nós uma sensação poética.


Enfim... de repente, se atentar e escutar esses silêncios, nos permita mesmo, ouvir alguma mensagem perdida no ar.


 
 
 

Comentários


Está procurando atendimento psicológico?
Entre em contato no link abaixo:

Atendimento Online ou Presencial (Região da Av. Paulista)

(11) 9 73073537

© 2023 by Luiza de Freitas. Powered and secured by Wix

bottom of page