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guardar memória em caquinhos

  • Foto do escritor: Luiza Freitas
    Luiza Freitas
  • 25 de set.
  • 8 min de leitura

Quando contamos uma história, passamos adiante uma espécie de conhecimento sobre o mundo, interpelado pela nossa escuta e pela nossa maneira de contar. Há muitos jeitos de se contar uma história. A escrita é uma dessas maneiras, talvez a mais notada e reconhecida delas. No entanto, parece-me importante perceber outros gestos que narram e transmitem conhecimento há muitos anos, e de diferentes jeitos em diferentes povos e culturas.

Um gesto, como “catar” cacos de uma cerâmica quebrada, e depois, colar esses cacos na estrutura de sua casa, formando uma flor ou um buquê. Esse gesto, repetido, várias e várias vezes, ao longo de décadas, produz uma casa de caquinhos. Aqui estou falando da Casa da Flor, construída por Gabriel Joaquim dos Santos, em São Pedro da Aldeia-RJ, na Região dos Lagos no Rio de Janeiro. De que maneiras os gestos materializados em uma Casa poderiam contar uma história?

Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985) começou a construção de uma casa para si em 1912, bem próxima da casa de sua família. Segundo relatos de Gabriel, foi por causa de sonhos que, a partir de 1923, começou a enfeitar a casa. A Casa da Flor tem esse nome, pois Gabriel ia criando flores com materiais de construção e outros restos descartados, utilizando cacos e cacarecos de vidros, conchas, pedras e barro. Costuma-se dizer também que Gabriel era filho de uma mulher indígena com um homem negro que fora escravizado, e depois de liberto, virou feitor de uma das fazendas da região.

A Casa da Flor se tornou patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2016, sendo reconhecida especialmente pelo seu “ineditismo criativo”, pela contribuição nos debates sobre processos de produção cultural e considerando o procedimento de transformação do lixo, entulho e materiais descartados em algo de valor estranho à sua utilidade inicial (IPHAN, 2016).

Talvez sejam essas as informações mais essenciais sobre a Casa da Flor e sua construção, muitas vezes enquadrada como “arquitetura fantástica” ou “arquitetura espontânea”. Espontânea, essa palavra, parece querer dizer que não houve uma concepção premeditada da construção, não houve um planejamento nos ditames do conhecimento formal de uma arquitetura clássica. Há, inclusive, debates acerca de construções como essa serem consideradas arte ou não. No entanto, não é essa a história que eu gostaria de contar hoje.

Construída com sonhos, cacos e cacarecos dos lixos e descartes de um determinado território, quais histórias a Casa da Flor nos conta?

 

As poéticas dos saberes

Vou fazer um desvio. E para este desvio, peço a companhia de Leda Maria Martins e seu livro “Performances do tempo espiralar, poética do corpo-tela” de 2021.

Neste livro, Martins aponta como a ideia de tempo ocidental é guiada pelas narrativas de começo, meio e fim, registradas principalmente pela escrita, nas quais a memória de um povo e sua cultura foram guardadas em documentos, notícias, livros, museus, partituras. A partir de cosmovisões africanas e indígenas, a pesquisadora nos faz refletir sobre temporalidade e memória, de uma perspectiva menos linear e mais espiralar. Mais próxima das poéticas e das oralidades. Uma memória, portanto, corporificada e performada continuamente, na qual o tempo não é um rio que corre sem nunca voltar, mas um todo espiralar, com encruzilhadas e permissão para reversibilidade. Citando Bosi, ela diz:

“o tempo poético interrompe e quebra a linha sequencial absoluta, enovelando curvas e espirais e assim, pelo “ciclo que se fecha e pelas ondas que vão e vêm, o poema abrevia e arredonda a linha temporal, sucessiva do discurso”. E acrescenta: “Rima e ritmo são procedimentos de retorno, de encurvamento, de reversibilidade interna, estrutura” (MARTINS, 2021)

 

No tempo poético não “perdemos tempo”, pois ele não é algo a ser apanhado em detrimento de uma produtividade. Assim como no tempo dos mitos, o que chamamos de passado, presente e futuro se conectam e se habitam de modo simultâneo. A memória, portanto, também não é registrada de modo unicamente linear, pela escritura, mas nas oralituras (MARTINS, 2021). A história oral, os rituais, os mitos se compõem e recompõem em performances, grafias executadas pelo canto, pela dança, pelo corpo.

A autora nos aponta como os modos de conhecimento diferentes daquele priorizado e valorizado pelo ocidente não eram nem mesmo reconhecidos como produção de saber. Isso é mais uma estratégia de domínio dos colonizadores: impor a primazia da escrita (linear, formal), e dicotomiza-la em relação às outras formas de saber, produzindo apagamentos e tentativas de apagamentos de culturas que carregam no corpo tradições, conhecimentos, espiritualidades.

Um dos exemplos narrados por Martins foi o canto-imagem do povo Maxakali, no qual o convite a ver pressupõe a escuta. Ela conta sobre a inscrição da memória de algo que eles nunca viram: animais e vegetações das mais variadas formas são descritos em detalhes em suas canções. Essa fauna e flora, entretanto, não fazem mais parte do território que habitam. Os Maxakali afirmam que tais imagens chegam até eles através de sonhos, nos quais ancestrais habitam aquele que sonha. O ancestral-imagem não deve ser visto ou fixado, mas alimentado e resguardado pela voz, através do canto. Quem sonha, é pai ou mãe do ancestral-imagem, e tem a responsabilidade de cantar. Leda Maria Martins afirma que o canto numinoso torna presente o que até então era ausente.

Fico pensando na palavra “resistência” e ao que resiste essa produção de memória que não acontece na palavra escrita, mas por outras linguagens, como a canção. Para diferentes povos, grafar o saber não é, como alguns ainda acreditam, dominar o idioma escrito alfabeticamente. “Grafar o saber era, sim, sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber encorpado, que encontrava nesse corpo em performance seu lugar e ambiente de inscrição” (MARTINS, 2021).

Quando afirmamos essas diferentes maneiras de grafar o saber, o gesto ético é o de resistência ao esquecimento. Contar histórias é uma maneira de produzir testemunho sobre determinada experiência, prática, acontecimento ou complexo cultural que precisa ser lembrada. Nesse sentido, outro povo que me vem à mente é povo quéchua. No artigo “El telar de los antiguos: una poética del testimonio quéchua” (2021), a pesquisadora peruana Sara Viera Mendoza argumenta sobre como a noção de “testemunho” do povo quéchua pode ser compreendido a partir da sua prática têxtil.

De acordo com Vera Mendoza, a “performance do testemunho quéchua” se refere a formas paralelas de “fiar”, através das quais se costura cores e iconografias do tecido a diversidade da memória e tradição de uma comunidade, o ato de tecer-fiar é também uma metáfora, na qual de tece fios e palavras discursos da vida cotidiana (VERA, 2021). Como um saber transmitido oralmente em uma relação dialética entre uma “narradora-ouvinte” e uma “ouvindo-narradora”, que se efetua analogicamente à tecelagem, na qual os fios se alternam de um lado para o outro, formando imagens. Uma palavra remete outras palavras, uma memória descobre outra memória, enquanto um fio contém outro fio, e cada história vai tramando outra história. Cada tecido carrega a identidade, o conhecimento e os saberes de quem o tece.

 

Chegando à Casa da Flor

Em minhas idas anuais à Cabo Frio-RJ, onde minha avó morou por muitos anos, chego na cidade de carro, sempre passando por São Pedro da Aldeia-RJ. Observando as antigas salinas sumindo entre matagais e cada vez mais conjuntos de casas iguais - cubos brancos envidraçados, multiplicando-se pelo trajeto. Essa mudança na paisagem, que testemunho como alguém de fora, ao longo dos últimos vinte anos, acompanham o movimento turístico efervescente da Região dos Lagos no estado do Rio do Janeiro. A beleza das praias convida mais e mais turistas, e mais e mais interesses imobiliários. Cria-se um cenário de conflito entre a valorização de um turismo lucrativo e a preservação do bioma e da memória da região (COSTA et al., 2022). 

A Casa da Flor parece existir em contraponto: única, repleta de cores e texturas, sem cheiro de tinta nova, enraizada há mais de cem anos no mesmo lugar. Há, ali, beleza também. Em depoimento para a pesquisadora Amélia Zaluar, que pesquisou a Casa da Flor e conviveu com ele por um tempo, Gabriel diz:

“De noite, acendo um lampião, me sento nessa cadeira, ó que vida, ó que alegria pra mim, ó que alegria nessa cadeira. Quando eu acendo a luz e vejo tudo prateado de noite, fico tão satisfeito! Tudo caquinho transformado em beleza! Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito… Me conforta…” (ZALUAR, 2012, p. 85)

 

Casa da Flor
Casa da Flor

 

Os gestos de Gabriel

Falando em contar histórias, Gabriel dos Santos é como um personagem-narrador no fio narrativo do documentário “Fios da Memória” (1991), de Eduardo Coutinho, concebido no contexto do centenário da abolição da escravidão no Brasil, completado em 1988. O filme pincela sua vida e é acompanhado por algumas das anotações feitas em seus “cadernos de assentamentos”, dos quais falarei mais adiante.

Sua biografia parece se entrelaçar à história do Brasil por uma perspectiva ainda incomum na literatura hegemônica. Como mencionado, Gabriel era filho de uma mulher indígena e um homem negro que havia sido escravizado. Havia diversos aldeamentos indígenas e fazendas que exploravam o trabalho de pessoas negras escravizadas, sendo marcada pela catequização de povos indígenas, exploração de trabalho escravo e, mesmo após a abolição, pelo assujeitamento de homens, mulheres e crianças a condições insalubres de trabalho, como nas salinas.

Quando penso em Gabriel, penso que em como ele se relacionou ativamente com o território, na maneira de se informar e informar, fazer registros de fatos e pensamentos, e transformar aquilo que fora descartado. É como se casa e autor fossem “capazes de sintetizar o processo histórico da complexa formação territorial da região, especialmente São Pedro da Aldeia e Cabo Frio” (BARRETO JÚNIOR, 2017). A transformação do caquinho em beleza, poderia ser compreendida como um procedimento de sincretismo, característico das práticas de resistência da população negra no país, de ressignificação, de transformação dos significados, presente na tradição africana, e executado por Gabriel (RODRIGUES, 1999).

A Casa da Flor parece uma espécie de memória viva de um movimento de deslocamento pelo território, já que ela é construída com pedaços, restos de objetos que faziam parte do cotidiano das pessoas que ali viviam. Gabriel nos empresta um modo de estar em relação ao mundo, tanto ao transgredir a utilidade de um objeto na transformação dele em algo próprio, como em seus registros escritos feitos nos cadernos de assentamentos. Ele aprendeu a ler e a escrever com 36 anos de idade, dali em diante, passou a escrever seus assentamentos, que no livro de Amélia Zaluar, “Casa da For: Tudo caquinho transformado em beleza” (2012), podemos acessar alguns trechos. Neles, há fatos históricos (como a chegada dos portugueses e o golpe militar em 1964) e fatos cotidianos da região (como uma briga na vizinhança ou um terremoto sentido em 1974). Ele registrava datas de nascimentos, mortes, casamentos, causos, brigas, salários, aposentadorias, e marcos da história do Brasil. 

Gabriel mesmo diz que a Casa da Flor é uma história, porque foi feita de “pensamentos e sonho”. O conceito de oralituras de Leda Maria Martins nos revela que a expressão e transmissão do conhecimento não acontece somente pela palavra escrita, mas pela oralidade e pelos gestos. A Casa da Flor é, nesse sentido, uma expressão de sabedoria e sua preservação a transmissão da memória de um tempo, de uma cultura e de um homem atento ao seu tempo. É a memória de gestos repetidos e encarnados em uma casa: a caminhada pela região das restingas, a composição das cores e texturas dos elementos em flor.

Gabriel mesmo nos diz: “Esta casa não é uma casa… isto é uma história. É uma história porque foi feita de pensamentos e sonho”. A materialidade da Casa da Flor pulsa a grafia de gestos, saberes, fabulações e um modo de viver e envolver-se com o mundo, com o corpo e com a casa.

A materialidade da Casa da Flor pulsa a grafia de gestos, saberes, fabulações e um modo de viver e envolver-se com o mundo, com o corpo e com a casa. Seus cadernos de assentamentos bordam também essa história. De certo modo, a história segue sendo contada e tecida pela oralidade poética de seu sobrinho-neto Valdevir dos Santos, que mantém essa memória viva pulsante.

 

Contando histórias com caquinhos

Visitar a Casa da Flor é visitar parte da história de seu criador, Gabriel, e também é visitar parte da história de um território. 

Isso exige tempo, paciência, escuta. Fico pensando se atualmente há disponibilidade para ouvir história contadas com caquinhos. Para guardar memórias em fragmentos. Em tempos de vídeos curtos e atenção curta, como temos contado e ouvido histórias?

 
 
 

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